Quando possui perfil ideal para a atividade e é capacitado, “materneiro” pode ajudar a reduzir índice de mortalidade da fazenda

Em um País com índices de mortalidade de bezerros do nascimento à desmama ainda muito altos (média de 9%), os chamados “materneiros” – nome que se dá aos vaqueiros responsáveis por cuidar dos partos e das crias em seus primeiros dias de vida – têm ganhado status crescente nas fazendas, por fazerem real diferença na rentabilidade do negócio. Esse profissional (nem sempre valorizado) precisa ser dedicado, observador e paciente, características que Evandro Marques da Silva tem de sobra. Há um ano e meio exercendo a função na Fazenda Araponga, em Jaciara, região sudeste de MT, ele já ajudou a baixar a taxa de mortalidade do plantel da propriedade, composto por 710 vacas puras e 170 receptoras cruzadas. Em função da melhoria no manejo, esse índice caiu de 8,9% para 5,4%. Para o proprietário, Shiro Nishimura, selecionador de Nelore PO há 30 anos, as mortes pós-natais representam grande prejuízo e devem ser reduzidas a no máximo 4% no próximo ano, meta nada fácil de atingir quando se trabalha com FIV fecundação in vitro), cujos produtos nascem mais frágeis.

O materneiro Evandro Marques tem consciência da importância de seu trabalho. “Se eu não fizer meu serviço bem-feito, a fazenda perde dinheiro e meus colegas não têm animais para cuidar”, diz. Melhor remunerado do que outros vaqueiros, ele tem o perfil certo para a função e capacitação adequada. Foi orientado pela veterinária Fernanda Macitelli, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (Etco) e docente da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), de Rondonópolis, MT. Ela e sua equipe desenvolvem um “trabalho de formiguinha” na região, para orientar os materneiros sobre cuidados neonatais, comportamento mãe-filho e manejo carinhoso dos animais. No último ano, Fernanda treinou oito profissionais de quatro fazendas. O trabalho inclui cursos e orientações a campo, inclusive para realização de autopsias visando à identificação da causa mortis (ainda um problema no Brasil), auxílio ao parto e lida no curral.

Segundo Elisa Nishimura, filha do proprietário, o trabalho realizado no último ano salvou pelo menos 15 bezerros, evitando uma perda de R$ 97.000, considerando- -se que esses animais serão vendidos como tourinhos que valem 50@ de boi gordo, arroba a R$ 130. O benefício não para por aí. Fernanda Macitelli explica que um animal melhor cuidado em seus sete primeiros dias de vida, que mamou o colostro da mãe e teve o umbigo curado corretamente tende a ser mais saudável tanto ao pé da vaca quanto na desmama e recria. “Somado ao investimento em genética e nutrição, o manejo racional, que começa ainda na maternidade, é a chave para ter touros mais dóceis, que, nos leilões realizados na propriedade, chamam a atenção dos compradores por sua calma”, acrescenta Deise Mescua Zuim, zootecnista da empresa.

Rotina prazerosa – O trabalho do materneiro Evandro Marques da Silva começa cedo e consiste em monitorar vacas em pré-parto e bezerros recém-nascidos. Às cinco horas da manhã, quando entra para trabalhar no pasto maternidade, sua primeira tarefa é identificar quem deu à luz na madrugada e quais as próximas vacas da fila de parição. “Eu costumo observar se a vulva delas está mais escura, sinal de que aumentou a pressão sanguínea na área e o parto está próximo”, diz. Na hora do nascimento, o bezerro que aponta os dois cascos para fora não lhe causa maior preocupação e nasce sozinho, o que acontece na maioria dos casos com vacas Nelore. “Agora, se preciso intervir, vejo se consigo manipular o animal dentro da cérvix e se é necessário prender a fêmea”, conta.

É Evandro quem vai de vaca em vaca para ver se suas tetas estão cheias e os bezerros mamando. Essa verificação garante que o fornecimento de colostro seja feito, no pasto (se tudo estiver conforme), no curral (se houver necessidade de auxílio) ou com uso do banco de colostro (se a vaca abandonar a cria). O materneiro também é responsável pela cura do umbigo, pesagem e vermifugação dos bezerros, procedimentos realizados em um cercado ao qual as vacas não têm acesso, para garantir a segurança do funcionário. Os bezerros que nascem à tarde têm o umbigo curado na manhã do dia seguinte e os que nascem logo cedo passam por esse protocolo ao entardecer. Isso para estimular ao máximo o contato entre mãe e filho após o nascimento. A média de partos na Fazenda Araponga é de quatro por dia, mas pode chegar a nove, em determinados períodos.

Nos dois piquetes maternidade, ambos com 20 hectares (um para novilhas e outro para multíparas, com o intuito de que as fêmeas mais eradas não roubem a cria das mais novas), a lotação é de até 40 vacas nos meses de parição, época que vai de setembro a outubro. “A ideia é que as matrizes entrem no piquete maternidade no mínimo 48 horas antes do parto e saiam sete dias depois do nascimento do bezerro”, explica Evandro. O restante do plantel ocupa os pastos pré e pós-maternidade, ficando sob os cuidados de outros três funcionários. Um piquete em frente à sede, de 3 ha, abriga as receptoras cruzadas de embriões fecundados em vitro que estão perto de parir e são de responsabilidade do materneiro, além de vacas que tiveram problemas de parto, mães de gêmeos e bezerros machucados ou fracos, que não conseguem mamar sozinhos e contam com a assistência de outro funcionário. “Ali, todos conseguimos ver o que está acontecendo e atender rapidamente os animais”, explica a zootecnista Deise Zuim.

Processo de capacitação – Em Jaciara e em outras fazendas onde realiza o trabalho de formação de materneiros, Fernanda costuma reunir todos os funcionários responsáveis pela cria para treinamento. “O objetivo é fazê-los falar a mesma língua e evitar que apenas o materneiro saiba realizar bem seu serviço. Assim, caso ele fique doente ou precise viajar, poderá ser substituído”, diz a professora. O curso dura, em média, três dias e pode se estender conforme o desempenho do pessoal no campo. No primeiro dia, Fernanda acompanha o trabalho dos funcionários e, calada, filma e fotografa o que vê. No segundo dia, ensina conceitos de anatomia e fisiologia, mostra tabelas, gráficos, estudos de caso e dados de pesquisa científica. “Vou falando sempre com um linguajar muito acessível, para que eles entendam o porquê de determinados procedimentos e não sejam apenas instruídos a fazer algo mecanicamente”. Nesse mesmo dia à tarde, ela revê os manejos praticados na fazenda mostrando o que registrou em foto e vídeo. O terceiro dia é dedicado a uma verdadeira aula prática, com todo o trabalho sendo supervisionado a campo por Fernanda. “O meu foco é melhorar as ações em benefício das pessoas e dos animais”, afirma.

Diante de um funcionário resistente ou contrário às mudanças propostas, ela alerta que o melhor remédio é conversar e, se não houver acordo, trocar a pessoa por outra que corresponda ao perfil do materneiro (confira no box como selecionar o profissional). “Não existe um jeito único de fazer o manejo, mas certas coisas que o vaqueiro não pode fazer, pois impactam diretamente no bem-estar animal e no bolso do dono da fazenda”, diz. Um exemplo é ajoelhar sem comedimento sobre o bezerro na hora do manejo, o que pode deslocar sua paleta ou machucar sua mandíbula. Outro exemplo é arrastar o animal com o laço, o que facilita a entrada de poeira em suas narinas, aumentando as chances de que ele desenvolva pneumonia.

A comunicação entre o materneiro e a especialista continua após o treinamento, sempre que possível. Evandro conta que o sucesso do controle de mortalidade na Fazenda Araponga depende também da análise das causas do óbito, tarefa para a qual Fernanda lhe dá suporte. “Eu mando vídeo, tiro minhas dúvidas com ela e juntos tentamos chegar a alguma conclusão”, afirma. No dia da visita da reportagem de DBO, uma vaca amanheceu vigilante ao lado de seu bezerro já morto. Fernanda fez a autopsia do animal, suspeitando que ele não tinha conseguido respirar, o que se confirmou após o exame. “Não é tudo que conseguimos controlar: tem perda por onça, ataque de urubus à noite e até pisada de vaca, que acontece, mas a gente faz o possível para não perder bezerro”, diz Evandro Marques.

Deise conta que, antes, quase 100% das mortes de bezerros eram atribuídas a causas desconhecidas ou fraqueza, o que mudou depois do treinamento. Além desses problemas, os registros agora apontam mortes por diarreia, má formação, infecções ou acidentes, o que contribui para que medidas efetivas sejam tomadas. Com as anotações feitas por Evandro em uma pequena caderneta, cujos canhotos são entregues diariamente à chefia, que digita as informações no computador, foi possível reduzir as mortes por diarreia e abortos ocasionados pela ingestão de plantas tóxicas. Agora, a diarreia é tratada no momento que o materneiro identifica o problema, independentemente de sua gravidade, e as vacas prenhas deixaram de ser colocadas em pastos mais sujos, próximos a reservas. Para atender a demandas sanitárias pontuais, Evandro também foi orientado a carregar medicamentos básicos consigo e a seguir um protocolo preventivo de aplicação de antibiótico nos bezerros ainda no primeiro manejo, o que está sendo testado para ver se ajuda a reduzir a taxa de mortalidade na fazenda.

Identificação é fundamental – A divisão dos pastos em três estações (pré, pós e maternidade), associada a uma rígida conferência do número de animais alojados nos piquetes, é outro resultado da mudança no manejo. No momento da cura do umbigo, além de marcar a orelha dos bezerros com o número da mãe, Evandro criou a estratégia de tatuar na costela deles seu número identificador, o que facilita o trabalho no pasto maternidade. Quando não encontra o par cria/vaca, ele corre para procurar a cria e, se o animal está machucado, trata de levá-lo para o piquete em frente à sede.

Com o número individual tatuado em tamanho grande na costela dos bezerros, Evandro também facilita a transferência deles do piquete maternidade para o pós-maternidade. Neste, como os filhotes continuam ao pé das mães, todas as matrizes que perderam suas crias, em algum estágio, são apartadas e avaliadas. Mantém-se sempre a razão 1:1 entre bezerros e vacas. Antes desse sistema de manejo, a equipe apenas constatava a falta de alguns animais na desmama, quando já não tinha como recuperá-los ou saber qual a razão de seu desaparecimento.

O desafio, neste e no próximo ano, será reduzir as perdas nas primeiras 48 horas de vida e dar atenção maior aos partos provenientes de FIV. “Estamos tendo casos de bezerros que nascem, mamam, o Evandro trata e, no dia seguinte, aparecem mortos. Isso exigirá um esforço nosso em observações e registros, para combater as raízes do problema”, diz Deise Zuim. A zootecnista também está estudando uma forma de sincronizar os nascimentos das receptoras. “Hoje, não temos como saber quando o parto ocorrerá. Então, tem bezerro que enrosca de madrugada”, conta Deise. A professora Fernanda Macitelli afirma que o trabalho exige persistência, mas é possível chegar a uma mortalidade próxima de 2,5%. Para isso, a fazenda tem de trabalhar.

Cuidados que poupam vidas – Para reduzir o índice de mortalidade na fazenda é fundamental seguir algumas diretrizes, como a escolha correta dos pastos maternidade, que devem ser baixos, mas de qualidade; próximos à sede ou ao curral, para que os animais fiquem à vista, e limpos, livres de grutas, valetas fundas e matas fechadas. Assegurar-se de que eventuais buracos sejam tapados e de que cercas e bebedouros estejam em ordem. Segundo Fernanda Macitelli, também é importante ter um responsável pelos partos. “Escolha o materneiro e crie protocolos para casos de parto distócico, falta de colostro, morte da vaca ou do bezerro, acidentes etc”, explica. O funcionário deve contar com todo o material necessário para realizar seu trabalho, como medicamentos, tatuador, pasta para tatuagem, aplicador de brincos, tesoura, pinça, agulhas, seringas, balança e luvas.

O bloco de notas deve funcionar como um diário de bordo do materneiro, que, nele, deve anotar o número de identificação do bezerro, seu sexo, data do nascimento e tamanho, escore corporal da vaca e condição do parto (com ou sem assistência). Detalhes sobre rejeição materna e dificuldade de mamar devem ser registrados no campo de observações. O ideal é que o pasto- -maternidade seja monitorado pelo menos uma vez pela manhã e outra pela tarde, em horários mais frescos. Detectado algum problema de parto, dificuldade de o bezerro se levantar, falha na mamada, bezerro pouco vigoroso ou vaca rejeitando a cria, o materneiro deve prestar socorro, se estiver capacitado para isso, ou comunicar o problema ao responsável da fazenda para que ele tome as devidas providências. Veja a seguir outros procedimentos essenciais na cria:

1 Tenha cuidado no manejo – A recomendação de Fernanda Macitelli é não manejar os recém-nascidos nas primeiras 6 horas após o parto; se possível até 12 horas e nunca arrastá-los. O laço deve servir para capturar e não para enforcar.

Se fazendo necessário, pode servir para conduzir o animal com calma, até mesmo preso ao arreio do cavalo. É recomendável instalar um “curralzinho” ou outra instalação semelhante no pasto maternidade para apartar os bezerros de suas mães, sem risco para o materneiro.

2 Saiba imobilizar o bezerro – Segure- -o pela virilha e o pescoço, apoie-o na perna e faça-o escorregar cuidadosamente até o chão. Quando o animal estiver deitado, use o peso de seu corpo de forma a evitar que ele tente se levantar. Jamais solte seu peso sobre o bezerro. Caso a fazenda tenha manta de contenção (veja reportagem no Especial de Instalações de maio e vídeo no Portal DBO), o animal deve ser segurado pela virilha e pescoço e apoiado na perna do manejador para facilitar a colocação de suas pernas nos buracos da manta, que fica suspensa em um suporte munido de balança. Caso a fazenda registre o peso do animal ao nascer, esse é o momento ideal.

3 Faça a cura do umbigo bem-feita – O cordão umbilical não precisa ser cortado, se seu tamanho não oferecer risco de pisoteio pela vaca ou o bezerro. Ele deve ser limpo com iodo diluído e tratado com um cicatrizante/ repelente, aplicado na parte que entra em contato com a pele do abdômen.

4 Identifique o bezerro – Se o método utilizado for a tatuagem, lembre-se de que o indicado é passar primeiro a tinta entre as nervuras da orelha do bezerro e só então usar o tatuador. Na sequência, espalhe a tinta novamente para fixá-la bem.

5 Aplique o endectocida prescrito pelo seu veterinário – Geralmente, o medicamento é ministrado por via subcutânea (embaixo da pele). Nesse procedimento, devem ser usadas seringa e agulha limpas. O local mais indicado é na região da tábua do pescoço. Algumas fazendas fazem uso de outros produtos, como antibióticos, que devem ser receitados por um médico veterinário. Atente-se à posologia e ao local correto de aplicação.

Observe se o bezerro ingeriu colostro – De olho no vazio do animal e no úbere da vaca, verifique se o bezerro mamou. Caso não tenha, ajude-o. Para tanto, a mãe pode ser amarrada no pasto, quando é mansa, ou levada para o curral para ser presa no tronco de contenção. Sendo necessário o fornecimento artificial de colostro, recorra ao banco de colostro e descongele o leite em banho maria até que atinja temperatura entre 35 e 37° C. Estes animais devem ser ajudados até que consigam mamar por conta própria na mãe ou na vaca madrinha (geralmente leiteira).

7 Mantenha o olhar sempre atento – Mesmo os bezerros que já passaram pelo manejo pós-parto podem apresentar problemas como diarreia, bicheiras, dificuldade de respiração ou infestação por carrapatos. Na rotina de visitas à maternidade, verifique como está sua condição sanitária.

Seleção do materneiro – A seleção de funcionários para exercer a função de materneiro deve ser criteriosa. Quando convidou Fernanda Macitelli para orientar o manejo na fazenda do pai, Elisa Nishimura queria que os peões entendessem que o gado precisa confiar neles e não ter medo ou responder ao uso da força, opinião compartilhada pela professora da UFMT. “Eu não humanizo os animais, mas quero que o materneiro entenda que um bezerro é um recém- nascido. Você não pega um bebê e joga no chão, arrasta, deixa com frio, com fome”, diz.

Nas entrevistas com o pessoal da fazenda para seleção dos que mais se aproximam do perfil ideal do materneiro, Fernanda faz perguntas para compreender os laços do funcionário com a profissão. Avisa que não vai passar as informações para o patrão, pergunta quantos anos ele tem, há quanto tempo e por que está trabalhando nessa área, quem lhe ensinou o ofício, se está satisfeito com o trabalho. Quando recebe uma negativa, pergunta o que poderia melhorar, se é a infraestrutura da fazenda ou algum processo que o torna menos eficiente. Indaga que outra profissão o candidato gostaria de ter, com o intuito de perceber se continuaria na agropecuária.

“Também pergunto se ele gostaria que os filhos fizessem o que ele faz, para ver se se sente valorizado. Pergunto do que ele tem medo e vejo se pende para o emocional (de perder os filhos, por exemplo) ou racional (medo de picada de cobra)”. Então, a professora fica alguns dias na fazenda e observa a relação do funcionário com a família, os animais, a tropa e outros colegas. “E escolhemos quem tem o perfil de cuidador, que mesmo debaixo de um sol de 40°C vai tentar não perder a paciência. Vai ver que dá para tocar a vaca sem se machucar, e não vai arrastar o bezerro”.

Fonte: Portal DBO